Impressões de um confinamento

Publicado dia 7 de abril de 2020
Horácio Prol Medeiros
 
Era 8 de março de 2020. Praticamente toda a minha família estava na Espanha, no Grove, cidade onde nasceu meu pai, para comemorar o aniversário de 85 anos desse tradicional espanhol da Galícia e realizar seu sonho de rever parentes e amigos. Estávamos felizes de reunir tantos membros de nossa família, de várias gerações, com muitas lembranças e abraços. Sim…. abraços! Apesar do mundo já falar em coronavírus, ainda parecia estar muito distante. A Espanha, naquela ocasião, não poderia imaginar que se tornaria um dos epicentros da contaminação.
Nosso voo de volta para o Brasil estava agendado para o dia 12 de março, em Lisboa. As notícias diziam que o Covid-19, o coronavírus, começava a se alastrar por países da Europa e causava estragos significativos na região da Lombardia, Itália. No dia do voo, chegava a notícia que o presidente dos EUA fechara os aeroportos do país para voos procedentes da Europa, exceto Reino Unido. Percebemos que poucos se davam conta de que algo muito sério estava acontecendo, pois um dia antes jantávamos em um restaurante em Lisboa que estava lotado, apesar da maioria da população em Portugal, cerca de 58%, ser de idosos.
 
Inquietações no retorno e a fase de “negação”
No voo para o Brasil muita gente já estava usando luvas e máscaras. Neste mesmo dia a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou pandemia mundial do Covid-19, e no Brasil começaram a surgir os primeiros casos. A recomendação para os provenientes da Europa era isolamento social por sete dias por prevenção, ou seja, se fôssemos portadores do vírus não contaminaríamos outras pessoas. Segui a recomendação e decidi me submeter ao teste para coronavírus, esperando um resultado negativo para poder voltar mais rapidamente ao trabalho. Mesmo com as notícias e orientações desencontradas, eu já estava ciente da necessidade de isolamento pela hipótese de transmitir o vírus e por me enquadrar no chamado grupo de risco: mais de 60 anos, diabético, hipertenso e cardiopata. Na realidade, nesta primeira fase do isolamento, pensando na prevenção, minha preocupação era não transmitir o vírus para outras pessoas. Apesar das notícias que já alarmavam o país eu me encontrava numa fase de negação: acreditava que, passados os sete dias de isolamento e tomando os cuidados recomendados, poderia voltar à “vida normal”.
Todos nós passamos por este estágio de negação quando nos deparamos com um problema, um sentimento difícil de lidar ou um desejo que precisamos esconder. Segundo a Psicanálise, é um mecanismo de defesa, ou seja, um processo inconsciente onde a pessoa não quer tomar conhecimento de um fato indesejável ou que traz sofrimento. Alguns psicanalistas contemporâneos tratam a negação como o primeiro estágio de um ciclo de enfrentamento e é absolutamente normal, desde que não se estenda por um período muito longo, pois neste caso passa a ser patológico.
A sensação de impotência e a fase de “negociação”
No sétimo dia do isolamento proposto, as notícias eram de que o vírus se espalhava com muita velocidade por todo o planeta, obrigando autoridades a medidas drásticas, como fechamento de fronteiras e isolamento social obrigatório. Dois últimos membros de nossa família que ainda se encontravam na Europa conseguiram voo para o Brasil pouco antes de se fecharam os aeroportos. Vários brasileiros não tiveram a mesma sorte.
Recebemos, porém, a triste notícia de que uma de minhas irmãs, que havia viajado conosco, estava no hospital com sintomas da Covid-19. Até o resultado do exame e sendo medicada como pneumonia, seu estado era bom, mas não menos preocupante. Por orientação, todos que haviam tido contato com ela deveriam ficar de quarentena por 14 dias mais. Meus pais, que moram com ela e têm 85 anos, passaram a ser a fonte de nossa preocupação. Tendo ficado aos cuidados da outra irmã, estavam confinados e sentindo falta de contato humano. Fiquei pensando: quem mais da família poderia ter o vírus? Será que passamos para outros? Muitos precisando de ajuda e eu, aqui em casa, sem poder fazer nada.
A sensação de impotência foi se instaurando. Esta é uma outra fase: começamos a lidar com a realidade e percebemos que não podemos alterá-la, lutamos internamente entre reconhecer a realidade e compreender a nossa pequenez diante dos fatos. É a fase da negociação (da realidade), que em mim se manifestou como um sentimento de impotência, quando já estamos lidando com o problema, mas sabemos que a solução não cabe a nós. Não é uma fase agradável. Não temos o controle, esta é a realidade! Nesta fase sentimos angústia, e se não soubermos equilibrar nossos pensamentos e emoções através da mudança de rotina – neste caso evitando viver 24 horas por dia atrás de notícias – e através de hábitos mais saudáveis, acabaremos nos deparando com o que costumamos chamar de pânico, ou seja, quando o estado de angústia se torna insuportável.
Recuperando o controle – “enfrentamento” e “ aceitação”
Costumam dizer que sou otimista. Comecei a entrar em contato com este lado, pensar positivamente, e fui me dando conta que todos da minha família estavam bem. Na minha rotina, além das leituras e filmes, inseri atividades físicas. Comecei a fazer reuniões por Skype com minha empresa para tratar dos desafios a enfrentar quando o governo do Estado determinou que a partir do dia 24 de março funcionariam apenas os serviços essenciais, o que não era o nosso caso.
Treze dias depois, dia 26 de março, saiu o resultado do meu exame para Covid-19: negativo. Estou aliviado, mas já não tenho expectativa de voltar a circular como de costume, considerando que sou do grupo de risco. Na empresa vamos nos adaptando, com a grande maioria de nossos empregados trabalhando por home-office. O resultado do exame da minha irmã para Covid-19 foi positivo, ela teve alta, está bem e segue com os medicamentos. Meu pai continua querendo ir para a rua, mas a família o conscientiza de que não pode. A pandemia continua crescendo no mundo: Itália, Espanha e Estados Unidos e muitos outros lugares. No Brasil não é diferente, apesar de serem poucos os casos confirmados porque não temos capacidade para realizar os exames necessários.
Passa um filme na minha cabeça: no dia 08.03 estávamos todos na Espanha comemorando o aniversário de meu pai com sua família de lá e mais 35 pessoas do Brasil. Agora nos reunimos por vídeo conferência e foi uma gritaria só! Imagine: família espanhola, todo mundo falando junto. Esta nova forma pode parecer estranha, a princípio, mas o fato de podermos nos encontrar, cada um em sua casa, me fez perceber que é possível demonstrar amor, carinho e cuidado, mesmo de longe. Esta é a mais nova fase: de enfrentamento e aceitação. Aceito a situação como ela é, sem idealizá-la, vivendo cada dia como é possível, ressignificando cada pequena situação. E quando tudo isto passar – e vai passar – haverá novas formas de se relacionar, de se sociabilizar, de demonstrar sentimentos.
Como sempre digo aos pacientes: tudo passa, coisas boas e coisas não tão boas. Enfrentar situações de crise nos faz mais fortes, nos torna resilientes e nos permite aproveitar melhor os bons momentos sem medo de lidar com as adversidades, caso elas apareçam.