Jéssica Kuhn indica “O pai”

Publicado dia 24 de junho de 2021

Jéssica Kuhn indica “O pai”

 

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“O pai”
Nacionalidade: Reino Unido, França
Ano: 2020
Direção: Florian Zeller
Gênero: Drama
Duração: 01:37
Plataforma: Netflix

Ser premiado com um Oscar no trabalho de estreia diz muito sobre a qualidade da obra. Mais ainda quando o prêmio é o de Melhor Roteiro Adaptado e o diretor é também o autor do texto. É o caso de “O pai” (“The father”), filme baseado na peça “Le Père”, do próprio diretor Florian Zeller. Como se não bastasse, o filme também levou outra estatueta, a de Melhor Ator, para Anthony Hopkins, que aos 83 anos, se tornou o ator mais velho a ganhar um Oscar, por sua elogiada interpretação de um idoso que sofre de demência senil.

A estória narra a vida do personagem Anthony (Anthony Hopkins), que começa a perder a memória devido à idade e ao avanço inexorável da demência (Alzeihmer), enquanto sua filha Anne (Oliva Colman) tenta convencê-lo a contratar alguém para lhe ajudar com as tarefas diárias.

Recusando toda a ajuda de sua filha à medida que envelhece, e ao tentar entender as mudanças em sua vida, ele começa a duvidar de seus entes queridos, de sua própria mente e até mesmo de sua realidade.

O filme trata essa viagem ao “esquecido” de forma muito realista e reconhecível, através de pequenos gestos extraídos da própria experiência do autor, que viveu o drama de perto através de sua avó.

O roteiro escrito pelo diretor junto ao dramaturgo Christopher Hampton utiliza com sabedoria os códigos do cinema de suspense para adentrarmos nas profundidades do drama emocional.

E assim, Zeller prega diversas peças ao longo do filme sobre o que é real, o que é a doença se manifestando, o que é um mero lapso de memória, e o que é a mente protegendo o protagonista de eventos traumáticos ocorridos em sua vida.

Logo nos primeiros minutos, ficamos intrigados e meio confusos por não encontrarmos uma linha cronológica para os acontecimentos. É que a excelente direção e roteiro, através de pequenos e sutis detalhes nos mostram que algo está acontecendo na mente de Anthony. E a narrativa labiríntica, fragmentada e confusa nos joga dentro da mente do idoso, e agora nem ele nem nós estamos seguros sobre informações básicas como por exemplo, se é dia ou noite.

Hopkins se consagra em seu papel, carregando a trama com todo o drama necessário. E ora nos faz rir, chorar, compadecer, amar e odiar o seu personagem.

Mas o filme se articula em torno de uma relação paterno-filial. E mesmo já  acostumados às excelentes atuações de Colman em filmes como “A favorita” ou em séries como “The Crown”,  uma vez mais nos admiramos de seu talento. Interpretação contida e olhar expressivo carregado de emoções: ela não precisa dizer absolutamente nada para que o público compreenda o que está sentindo.

Se você convive ou já conviveu com uma pessoa com demência, a empatia com a personagem de Anne é brutal desde o primeiro instante e compreende-se  perfeitamente seu dilema moral e os problemas que enfrenta.

Anne se pergunta se tem direito a viver sua própria vida sabendo que pouco a pouco seu pai está perdendo a dele e ela perdendo seu pai.

Com cerca de uma hora e meia de duração, o filme consegue fazer com que o espectador entre na pele de cada um dos seus seis únicos personagens. Todos eles expressam com sensibilidade a dificuldade de “acertar” em um conflito dramático no qual entram em jogo o dinheiro, a filiação, a dignidade, a perda.

Vale ressaltar também o excelente trabalho de fotografia de Ben Smithard, que utiliza o azul como a representação paterna do humor que gira em torno do protagonista, mesmo quando sua filha Anne está próxima.

Duas cenas se destacam. Aquela em que experienciamos a doença em primeira mão, quando Anne não é Olivia Colman, mas sim Olivia Williams, o primeiro verdadeiro murro no estômago. A dor na cara do pai que não reconhece a própria filha é devastadora.

E a última cena do filme, quando a saúde mental do personagem de Anthony Hopkins está tão deteriorada que não se recorda nem de quem é e pede desconsoladamente para encontrar-se com sua mãe.

“O pai” é um filme que transpira humanidade e que nos deixa uma sensação de tristeza na alma, já que não podemos escapar da estória sobre o esquecimento de Anthony, nem do desejo de Anne de viver sua vida, sabendo-se ao mesmo tempo responsável por cuidar da enfermidade de seu pai. A passagem do tempo, a deterioração das faculdades mentais, o cuidado com os nossos pais, o esquecido… são temas presentes na obra, e também em nossa vida.

“O pai” gera autêntica angústia e nos faz sentir o sofrimento de viver capturado em buracos temporais, em um labirinto de momentos que se comunicam entre si, mas que deixaram de ter sentido e nos quais as emoções ficaram gravadas de forma indelével, ainda que já não seja possível remeter-se à sua origem. E escancara que ao final de nossas vidas somos mais parecidos do que nunca às crianças que fomos no começo.

A identidade distorcida e borrada do protagonista serve também como metáfora do efêmero de nossa existência. A vida doí e o filme também.

Não é um filme fácil de recomendar, tampouco fácil de ser visto. “O pai” é o retrato autêntico e real da fase mais temida pelo ser humano. Doloroso de assistir, não só pelo drama de Anthony com sua doença, mas também por retratar o impacto que a situação promove na vida de todas as pessoas ao redor.

Mas há também uma mensagem sobre a necessidade de aproveitar o momento e não renunciar às oportunidades de  desfrutar a vida.

Florian Zeller nos traz um retrato firme, duro e ao mesmo tempo delicado do envelhecimento. Uma narrativa devastadora do poder da doença, das memórias, e do final do amor pela vida.

 

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