Jéssica Kuhn indica “Radioactive”

Publicado dia 13 de maio de 2021

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“Radioactive”
Nacionalidade: Reino Unido, França, Estados Unidos, China, Hungria
Ano: 2019
Direção: Marjane Satrape
Gênero: Biografia, drama, romance
Duração: 1:49
Plataforma: Netflix

Primeira mulher a fazer doutorado na França e a receber um prêmio Nobel (de Química), primeira pessoa a receber um segundo Nobel numa área distinta (Física), cientista mais conhecida do mundo, descobridora, em 1898, de dois elementos químicos, o polônio (nome que homenageia seu país natal) e o rádio – descobertas que ajudaram no desenvolvimento da quimioterapia para o tratamento do câncer e também na criação da tecnologia em raio-X.

Estamos falando de Maria Sklodowska, mais conhecida como Marie Curie, cuja cinebiografia, baseada na graphic novel “Radioctive: Marie & Pierre Curie: A Tale of Love and Fallout”, de 2010, escrita por Lauren Redniss, estreou recentemente na plataforma Netflix, sob direção de Marjane Satrapi e com Rosamund Pike no papel principal.

Durante a Primeira Guerra Mundial, Marie Curie criou unidades móveis de radiografia, que foram apelidadas de “petites Curies” (“pequenas Curies”, em francês), que examinavam soldados feridos e identificavam fraturas, evitando assim amputações desnecessárias. Após a guerra, ela contou suas experiências no livro “Radiologia na Guerra”, publicado em 1919. Após o armistício, ela buscou recursos para fundar dois institutos de estudos sobre o rádio, um em Paris e outro em Varsóvia, na Polônia. Ambos continuam gerando pesquisas médicas importantes até hoje.

A generosidade de Madame Marie, como era chamada, fez com que ela distribuísse o dinheiro de ambas premiações entre conhecidos que passavam por aperto financeiro, inclusive estudantes.

O filme, no entanto, subutiliza ou simplesmente omite algumas destas passagens importantes, optando em vez disso por incorrer em  “romantizações” forçadas e algumas inverdades.

A trama do romance de Marie e Pierre Curie, por exemplo, tem momentos criados para deixá-lo mais cinematográfico. No filme, eles se  conhecem acidentalmente,  quando Marie se choca com Pierre nas ruas de Paris e ele nota o que a cientista está lendo. Pura ficção romântica, que subestima a inteligência do espectador.

A história real é que os dois se conheceram porque o professor de física, Józef Wierusz-Kowalski, sabia que Marie precisava de um laboratório e Pierre poderia ajudá-la.

Outro ponto que parece ser meramente fictício é o suposto medo irracional de Marie por hospitais. Ninguém sabe se isso é realmente verdadeiro.

O longa da Netflix também muda e minimiza algo importante: o interesse de Pierre Curie pelas pesquisas místicas. Ele teve uma longa amizade com a espiritualista Eusapia Palladino, tendo convidado vários membros da comunidade científica para acompanhar seu trabalho.

Outra modificação no filme é que Marie não consegue doar suas medalhas do Prêmio Nobel. O Banco Nacional da França recusa a proposta. Mas a sua obstinação por construir máquinas portáteis de raio-X para os soldados usarem na Primeira Guerra Mundial faz com que ela compre títulos de guerra com o dinheiro que ganhou com os prêmios.

O filme, porém, tem seus méritos por explorar o destaque científico alcançado por Marie Curie e por destacar os inúmeras obstáculos colocados em seu caminho pelo simples fato de ser mulher.

No mesmo ano em que receberia seu segundo Nobel, a Academia Francesa de Ciências deixou, por dois votos, de elegê-la como integrante. O filme não mostra, mas ela não conseguiu entrar numa universidade tradicional na Polônia porque não aceitavam mulheres. Já em Paris, tinha menos espaço e verba do que seus pares homens para desenvolver suas pesquisas e só foi promovida a professora na Sorbonne (a primeira mulher a obter o cargo) quando da morte do marido.

Aliás, Pierre Curie teria sido o único nomeado ao primeiro prêmio Nobel caso ele não tivesse incluído também o nome dela, apesar da pesquisa ser conduzida por ambos. Anos depois, já famosa por seu trabalho na Ciência, ela teve que lidar com a discriminação dentro e fora da universidade quando se envolveu com um homem casado, após a morte de Pierre. O affair suscitou uma campanha de difamação que quase lhe tirou o segundo Nobel – e aqui é interessante questionarmos se homens precisariam enfrentar esse tipo de problema.

Ao abordarmos o filme sob o olhar da psicanálise, é oportuno, aliás, lembrarmos que enquanto Sigmund Freud elaborava os princípios de sua teoria psicanalítica e estudava os traumas femininos, ele impedia que sua filha estudasse medicina – segundo afirmou Esperanza Bosch, doutora em psicologia, em um seminário sobre feminismo. Anna Freud teve que ser professora até os 30 anos, quando começou a revisar as teorias de seu pai, para enfim se tornar uma grande estudiosa da psicanálise.

De qualquer forma, no filme é possível observar elementos abordados e descritos por Sigmund. Ele aponta, como características de várias pessoas neuróticas que ele tratou, uma tríade de aspectos que fundam suas raízes na fase anal: são pessoas organizadas, poupadoras (ou ao contrário, extremamente generosas) e perseverantes. Efetivamente, percebe-se em Marie Curie esse infatigável esforço de pesquisar, descobrir e ser reconhecida por seu trabalho.

Já em “Luto e melancolia”, Freud estabelece uma diferença entre um luto neurótico frente à perda de um ser querido e uma situação de melancolia. Em um luto neurótico, a pessoa sabe o que perdeu e após um tempo ela coloca outro objeto em seu lugar. No melancólico, não é isso que acontece. Diz Freud: “nestes, a sombra do objeto cai sobre o Eu”. Em Marie Curie, embora haja uma tristeza que não sairá mais dela, ela é capaz de investir seu amor em outro objeto (seu amigo cientista e casado) e também de sublimar seu amor por Pierre com seu incansável trabalho científico.

Em “As pulsões e seus destinos”, Freud ressalta a sublimação como uma das grandes finalidades da libido, ou seja, o desvio da carga sexual das pulsões para objetos dessexualizados e socialmente aceitos.

Assim, Marie tratará de fechar essa ferida com uma entrega quase absoluta à causa da pesquisa científica e do progresso da ciência. Pode ser que tenha caído em frequentes estados depressivos. Até porque, carregará um corpo para sempre marcado pelo contato com o que foi a causa de sua popularidade: o elemento rádio.

Cabe ainda comentar que a destilação de dez toneladas do mineral pechblenda, de que se obtém uma milésima parte para isolar o rádio, é uma bela metáfora daquilo que constitui o trabalho duro de uma análise: destilar, destilar, destilar, até que finalmente se encontre o “essencial”.

Por sua vez, Jacques Lacan aponta que a verdade tem estrutura de ficção, o que significa que não há uma única verdade. Ou seja, tratando-se da verdade de um sujeito, cada qual construirá a sua com os significantes que marcaram sua vida. Talvez tenha sido exatamente isso que norteou o roteirista desta cinebiografia.

Ficções à parte, Marie Curie ganhou um reconhecimento que deveria ter feito cair por terra aquele preconceito de que as mulheres não servem para a ciência. De fato, em uma ocasião quando lhe perguntaram se ela era feminista, no auge do movimento, ela respondeu negativamente, afirmando, não acreditar na diferença entre os sexos.

A propósito disso tudo, a situação atual das mulheres na ciência, continua sendo difícil no que diz respeito ao reconhecimento de seu valor como cientista, de maneira que os mais altos cargos diretivos continuam em sua grande maioria ocupados por homens. As próprias carreiras científicas em si, segundo estatísticas, continuam mostrando uma considerável diferença numérica entre homens e mulheres. Portanto, há muito a se fazer ainda, e filmes como esse ao menos servem para trazer maior visibilidade para o problema e demonstrar o quanto se perde quando os critérios de avaliação deixam de ser os mais objetivos.