Jéssica Kuhn indica “Machuca”

Publicado dia 1 de julho de 2021

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“Machuca”
Nacionalidade: Chile, Espanha, Reino Unido, França
Ano: 2004
Direção: Andrés Wood
Gênero: Drama
Duração: 01:56
Plataforma: Netflix

Em 1973, o Chile passava por um momento conturbado de transição política. O diretor Andrés Wood tinha apenas oito anos à época, quando viveu uma experiência que, muitos anos mais tarde, acabaria reproduzindo neste que é, provavelmente, o seu filme mais conhecido. Assim, Wood, de uma forma quase autobiográfica, cria o Colégio Saint Patrick, dirigido pelo padre McEnroe (Ernesto Malbrán), o narrador Gonzalo Infante (Matías Quer), seu amigo Pedro Machuca (Ariel Mateluna), e ainda reconstitui o Chile às vésperas do golpe de 11 de setembro, que derrubou o presidente esquerdista Salvador Allende e instaurou o regime militar sob o comando do general Augusto Pinochet, que durou quase 20 anos.

“Machuca” pode ser visto quase como uma refilmagem de “Adeus, Meninos” ambientada no Chile da época do golpe militar de Pinochet. Se no filme de Louis Malle (de 1987) um colégio católico abriga meninos judeus à época da ocupação da França pelos nazistas, no de Andrés Wood um colégio católico de elite acolhe garotos de uma favela de Santiago, no final do governo socialista de Allende.

É nesse contexto que Gonzalo, menino loiro, branco e de família rica, filho de um grande empresário, torna-se amigo de Pedro Machuca, seu colega de escola, garoto pobre, de origem indígena e morador da periferia de Santiago.

Gonzalo se sente desconfortável em seu próprio meio social, sobretudo ao ver a mãe manter relações suspeitas com um senhor argentino (o excelente Federico Luppi) que lhe traz regularmente produtos que estão em falta no Chile de Allende.

Ao conhecer Machuca, Gonzalo conhece um novo mundo, de escassez material e complexidade humana. Descobre a favela com suas misérias e liberdade (inclusive sexual). Fascinado de início, logo se choca com o esgoto a céu aberto, a falta de conforto e a brutalidade alcoolizada dos vizinhos.

Machuca, por sua vez, ao lado de Gonzalo, será apresentado à opulência dos bairros ricos da capital chilena e a tudo aquilo que o dinheiro pode comprar.

E nós espectadores, junto com os dois meninos, relembramos o primeiro porre, o primeiro beijo, as eternas amizades relâmpagos da juventude.

A política entra em cena no filme de forma oblíqua, quando, por exemplo, um tio de Machuca ganha a vida vendendo bandeirinhas para manifestantes. Para os conservadores, bandeirinhas de direita. Para os revolucionários, bandeirinhas de esquerda. Como é uma época de passeatas quase diárias, seu “mercado” está aquecido.

Ao lado do amigo, Gonzalo participa entusiasmado desse comércio e das manifestações correspondentes, gritando ora “Fora Allende comunista”, ora “Abaixo o imperialismo”.

Ao mostrar de forma indireta e sutil a explosiva situação chilena pré-golpe, o filme se torna ainda mais interessante. Um bom exemplo é o muro de um terreno baldio por onde Gonzalo passa diariamente a caminho da escola.

Na primeira vez em que o muro aparece, há nele uma pichação que diz “Não à guerra civil”. Ainda havia a esperança de sobrevivência do governo popular de Allende. Na segunda vez, em vista do acirramento dos conflitos de interesse, alguém riscou a palavra “não”, tornando a frase uma incitação: “À guerra civil”. Por fim, consumado o golpe, o muro surge caiado. Não havia mais manifestação possível.

A escolha de contar a história pelos olhos das crianças dá a Wood a liberdade de mostrar esses dois mundos sem preconceitos ou julgamentos.

Pena que, no final, acabe por resvalar para um discurso explícito e um tanto sentimental, através da figura do padre McEnroe, diretor do colégio, como mártir da democracia.

Nessa hora há praticamente um remake (homenagem, talvez?) da cena análoga de “Adeus, Meninos”, reforçando o paralelo entre os dois longas.

“Machuca” é um filme cativante e que vale muito a pena ser visto, pois fala de eventos passados que ainda hoje nos assombram. Os fantasmas ali construídos ainda habitam o imaginário atual, por isso ele também é tão impactante e comovente.

E do ponto de vista da psicanálise, ele também tem muito a dizer.

A psicanálise trata em primeira e última instância da criança que há em nós. Da criança ferida, daquela criança que nos habita e que aprendeu a se defender de um mundo que lhe amedronta, que lhe é hostil, que lhe revolta e lhe entristece…

Como se constrói o olhar infantil sobre situações permeadas pelo sofrimento? Como as crianças vivem momentos de efervescência política? Como vivem as diferenças e o acirramento da luta de classes? Como elaboram o luto, as perdas, o abandono, a separação de seus pais? Como elas experimentam a pobreza e as mazelas do mundo?

Essas mesmas crianças são as que levaremos conosco até o final de nossas vidas. É dessas crianças que a psicanálise sobretudo se ocupa.

E se a realidade vivida é difícil de suportar, maior a necessidade de substituí-la por outra mais lúdica e poética, o que as crianças e os “loucos” fazem melhor do que ninguém.

“O privilégio da infância é podermos transitar livremente entre a magia da vida e os mingaus de aveia, entre um medo desmesurado e uma alegria sem limites (…) Eu sentia dificuldade para distinguir entre o que era imaginado e o que era real”, escreveu certa vez o cineasta sueco Ingmar Bergman.

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