A função paterna

Publicado dia 4 de agosto de 2020

Maria Zélia B. Souza

Quando pensávamos em família, até pouco tempo atrás, vinha a imagem do pai, mãe, filhos, sentados à mesa para desfrutarem de uma boa refeição, num dia de domingo. Era o que chamávamos de família patriarcal. Porém, cada vez mais, este formato definido pela sociedade como “padrão” vem sendo substituído por novos modelos, onde o que vale é a relação de afeto entre as pessoas.

Na sociedade moderna, o que estamos testemunhando na realidade são cada vez mais novos tipos de família, tais como a chamada família monoparental, ou seja, famílias constituídas pela presença somente de mãe e filho, ou pai e filho, em situações decorrentes de abandonos paternos ou maternos, ou ainda frutos de produções independentes, falecimento de um dos cônjuges, separações com cisão do relacionamento paterno ou materno.

Uma outra realidade que vem crescendo a cada ano é o casamento homoafetivo, que foi autorizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2013, e teve no comparativo entre 2018 e 2019 um crescimento de 61,7%, segundo as estatísticas do Registro Civil, divulgadas pelo IBGE. Esta possibilidade levou também a um aumento nas iniciativa de adoção de filhos por parte de casais do mesmo sexo, ou a própria geração de filhos biológicos com a participação de uma terceira pessoa.

 

Desde que Freud difundiu a Psicanálise no início do século passado, sabemos que a figura de PAI e MÃE são estruturantes para o desenvolvimento da personalidade humana. Segundo os estudos desenvolvidos por Freud, e complementados por outros psicanalistas no decorrer do século XX, como Melanie Klein e Donald Winnicott, entre outros, até a adolescência a criança passa por fases sucessivas, onde estas figuras apresentam papeis preponderantes na formação de um ego que dê conta das contrariedades apresentadas pela vida.

 

E como fica a nossa sociedade atual?

 

Estamos fadados, em nossa maioria, a uma sociedade que gera necessariamente adultos desajustados oriundos de famílias formadas “fora de um padrão”, onde Pai e Mãe, enquanto figuras humanas biologicamente masculina e feminina, não estão presentes de maneira literal?

Mesmo vivendo em uma sociedade bem diferente da atual, Freud já antecipava conceitos que mais tarde o psicanalista francês Jacques Lacan sistematizou de forma mais clara, instituindo o que chamamos hoje de “função paterna” e “função materna”. Para Lacan, estas funções são representações simbólicas, e vão além da relação biológica e da presença física de um homem (marido/pai), e de uma mulher (esposa/mãe).

De uma maneira simplificada, para não entrarmos na complexidade e peculiaridades que estes papeis tem para a psicanálise, como o próprio nome diz, estas representações são funções, ou seja, um papel a ser desempenhado por cada um dos componentes desta nova família, ou até mesmo uma única pessoa desenvolvendo os dois papeis.

Definindo os papeis

A mãe simbólica é aquela que cuida, acolhe, tem uma relação importante através da troca de carícias, alimenta, ou seja, aquela que gera a segurança do afeto. A segurança de sentir-se amado, desejado. Desde bebê a criança se sente ligada a esta presença da mãe, confundindo-se com ela muitas vezes, e no seu desejo, ela quer ficar no gozo de sua presença para sempre. É uma fase narcísica, onde a criança “acha” que a mãe está ali para atender os seus desejos e necessidades.

Segundo Freud, o pai simbólico é aquele que vai romper essa relação narcísica da criança com a mãe, fazendo a passagem do Narciso ao Édipo, constituindo uma presença forte, segura, onde a criança vai pouco a pouco rompendo a simbiose mãe-filho, instaurando uma relação a três. A criança começa a perceber o pai (o “Outro”) através de sua presença fálica, no sentido de falus, poder, mais ou menos a partir dos seis anos. Esta fase é super importante para que a criança, já tendo recebido o acolhimento afetivo nas fases anteriores, saia do conforto do gozo de ter a mãe só para si, e queira se abrir para o mundo, admirando o pai, e ao mesmo tempo sendo olhada por ele.

O pai simbólico também representa a lei, o limite que a criança precisa para lidar bem com as contrariedades do mundo, para que seja um adulto com um ego bem constituído, e que dê conta de suportar e sobreviver a tudo o que vier ocorrer na sua história.

Portanto os papeis simbólicos de PAI E MÃE podem ser exercidos por qualquer membro da família, seja ele homem ou mulher, avó, tio, padrasto, ou até mesmo uma mãe sozinha na função de criar e educar uma criança. Para uma mãe que exerce e acumula as funções maternas e paternas, a sua atividade profissional costuma ser “aquilo” que vai exercer a função de interromper o gozo da criança, privando-a da sua presença, e desta forma obrigando-a a lidar com a falta e elaborar de forma sadia esta ausência, desde que, nos primeiros anos, essa criança tenha recebido o acolhimento e amor necessários.

Polaridades em equilíbrio

O importante é entendermos a alternância sadia que forma o equilíbrio das polaridades feminina e masculina, não como característica biológica, mas como energias que tem funções diferentes e são complementares. Uma criança que só recebe acolhimento, carinho, e não faz o corte do gozo da presença da mãe simbólica, que a forçaria a elaborar esta falta no momento certo, pode acabar se tornando um adulto narcísico, fraco, sem confiança necessária para se lançar ao mundo.

Em ambas as funções há um componente importantíssimo, sem o qual a criança não consegue constituir sua personalidade de maneira positiva. Este componente é o amor. O amor que acolhe, cuida, protege, mas também dá limites, incentiva, apoia, ajuda, ensina, impulsiona, fica junto, observa, e deixa ir quando for a hora.

Neste dia dos Pais, que o PAI SIMBÓLICO de cada um que exerce esta função possa se conscientizar da importância do seu papel, de ajudar a formar um novo ser humano, mais equilibrado, mais justo, pronto a exercer no mundo o seu papel de cidadão.

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