“Cringe”, e o choque de gerações

Publicado dia 13 de julho de 2021

Jéssica Kuhn

Se você tem alguma rede social, deve ter lido a palavra “cringe” nas últimas semanas. O termo de origem inglesa é usado na gíria para se referir a momentos desconfortáveis e constrangedores vividos pelas pessoas. Nas redes sociais, a palavra é bastante usada como sinônimo de “mico” ou “brega”, denominando assim certas atitudes dos mais velhos que os mais jovens consideram vergonhosas.

Ridicularizados pela chamada “geração Z” (também denominada “GenZ”, “pós-millennials”, ou ainda “nativos digitais” – já que nasceram entre 1995 a 2010, já imersos na tecnologia e na Internet), os “millenials”, jovens de 20 e poucos anos foram chamados de “cringe”, e de repente se viram transformados em “ex-jovens”, dando margem a muitos memes e reflexões.

O pequeno intervalo de idade entre quem zoa e é zoado chama a atenção e causa espanto, além de deixar um doce sabor de vingança nas gerações anteriores a 1980.

Freud já nos alertava para a importância dos chistes, e vale aqui ressaltar que estas “brincadeiras” carregam uma mensagem cheia de significados e de sentidos.

E como explica o cientista social Eduardo Ramirez Meza, “não podemos esquecer que a fronteira entre juventude e velhice sempre foi um campo de disputa de poder, e isso tem sido assim em todas as sociedades. Ou seja, o conteúdo é novo, mas o jogo discursivo nada tem de novidade”.

A questão do etarismo

“Discriminação etária”, “discriminação geracional”, “idadismo”, ou ainda, “etarismo” são termos usados em referência a um tipo de discriminação contra pessoas ou grupos baseado na idade.

Declarações e brincadeiras que reforçam o lugar negativo da velhice em nossa sociedade são comuns. A questão da velhice está muito ligada à finitude e todos sabemos como é difícil lidar com a morte.

O alerta aqui é que o etarismo, como todo preconceito, é danoso e pode causar problemas sérios de saúde, como ansiedade e depressão, trazendo rigidez e sofrimento psíquico em vários aspectos.

Jovem para sempre?

Se o choque geracional sempre existiu e até certo ponto é saudável, a ideia de permanecer jovem para sempre tem nos consumido cada vez mais em uma busca frenética e desesperada de barrar o envelhecimento.

O tema assume maior importância quando sabemos que a partir de 2022 a velhice será considerada doença pela Organização Mundial de Saúde. O processo natural do envelhecimento não deverá mais ser encarado como natural. Se o idoso hoje já não é muito bem visto pela nossa sociedade, agora assumirá também o “status” de patológico. Por que não, se estamos numa sociedade verdadeiramente doente? Em tempos onde cada DMS (Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais),  parece cada vez mais patologizar tudo, como por exemplo, o próprio comportamento rebelde dos adolescentes?

Para dar uma forcinha ao novo CID (Classificação Internacional de Doenças) que vem por aí, pesquisadores de Harvard vêm trabalhando duro no sentido de descobrir o gene que desencadeia a velhice. Claro que a culpa não é deles. O sonho da eterna juventude e da imortalidade nunca nos deixou e agora parece dar acenos mais concretos, ainda que distantes.

A dificuldade de encarar a passagem do tempo

Se antigamente as crianças não viam a hora de crescer e se tornarem adultas, nós, criaturas da pósmodernidade, estamos correndo em sentido contrário, devido a um incessante e velado desespero em envelhecer.

A infância e a velhice têm se tornado “cringe”. Crianças de 10 anos já se autodenominam adolescentes, enquanto adultos entre 30 e 40 fazem de tudo para não sair da adolescência (os chamados “adultescentes”).

Reféns da era do descarte rápido das coisas e das pessoas e transformados ao mesmo tempo em objetos de consumo e meros consumidores, cada vez mais o pesadelo da ameaça de ficar para trás nos amedronta. Afinal, ninguém gosta de ser assim facilmente descartado.

O mundo parece estar cada vez mais rápido e é preciso acompanhar as mudanças e manter as aparências. O ultimato a pesar sobre nossas cabeças é: mantenha-se jovem ou caia fora de uma vez. Por isso a tendência é ser jovem para sempre.

Inseridos em uma cultura narcísica e individualista, repleta de retratos de Dorian Gray na mídia e nas redes sociais, precisamos estar sempre lindos e jovens, congelados no tempo, mesmo que à base de muitos “aplicativos”, que vão desde um Photoshop, truques de maquiagem, harmonização facial e botox.

A forma como perseguimos uma certa imagem idealizada de nós mesmos acaba por nos constranger e impedir nossa livre e espontânea manifestação. Afinal, queremos corresponder a uma foto retocada em seus melhores ângulos. Existir na vida real chega a dar medo.

E quando saímos de trás das telas e nos mostramos ao vivo e em cores, o que deveria ser retrato revela-se assustadoramente real. Talvez seja esse um dos motivos para o desinteresse dos mais jovens pelos encontros sexuais, mesmo antes da pandemia.

Como envelhecer em paz e com saúde após um “veredicto” desses?

Estudos apontam uma previsão para o Brasil de 30 milhões de idosos no ano de 2025. Mas a nossa sociedade ainda está estruturada para privilegiar as populações jovens, ativas e produtivas, rejeitando as mais velhas.

Alertados por Lacan que o tempo simbólico não é o mesmo do relógio, fica mais fácil compreender porque às vezes é tão difícil se encaixar em diferentes fases da vida.

Por isso a importância dos ritos de passagem, que atravessam os processos do corpo e as condutas sociais. Infelizmente, eles estão cada vez mais raros.

É possível viver uma existência que não respeita seus processos sem adoecer? Definitivamente, não. É o que acontece, por exemplo, quando ao insistir em fugir do presente para viver no eu do passado, gera-se uma depressão.

Habitar uma juventude perpétua e recusar-se a crescer também não é psiquicamente saudável, é pura fantasia. E revela uma grande dificuldade em lidar com a vida adulta e suportar o “lugar de rebotalho”, como Lacan chamava o lugar do analista.

Então, queridos e queridas Peter Pans, entendam que não há mal algum em ser cringe! Talvez até faça bem pra sua saúde física e mental.

 

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