Jéssica Kuhn indica “A ilha do medo”

Publicado dia 22 de abril de 2021

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“A ilha do medo”
Nacionalidade: Estados Unidos
Ano: 2010
Direção: Martin Scorcese
Gênero: Mistério, suspense
Duração: 2:18
Plataforma: Netflix, Google Play, PrimeVideo, Now, Claro Video, AppleTV, Microsoft

Dirigido por Martin Scorsese e baseado no livro homônimo de Dennis Lehane, “A Ilha do Medo” (“Shutter Island”), é um filme repleto de referências cinematográficas, históricas e psicanalíticas, com enigmas e cenas impactantes que tornam impossível não se envolver com a trama desde os primeiros minutos.

 

A estória se passa na década de 50, quando o agente federal Teddy Daniels, Interpretado por Leonardo Di Caprio, e seu novo parceiro de trabalho Chuck (Mark Ruffalo), vão a uma prisão psiquiátrica, localizada na ilha de Shutter, investigar o desaparecimento de Rachel Solange (Emily Mortmer), um dos 67 pacientes prisioneiros da instalação. Ao chegarem lá percebem que o local é cheio de mistérios e as coisas não são como deveriam ser. E para piorar, eles ficam presos na ilha por causa de um temporal.

 

É uma pena que a tradução do título escolhida para circular no Brasil tenha sido A Ilha do Medo”, já que o nome original não é uma escolha ocasional. Aliás, nada nesse filme é por acaso. Lembremos que “shutter” pode significar “persiana”, “veneziana” e também “obturador” (em fotografia é o dispositivo da máquina fotográfica que funciona como uma cortina, que cobre o sensor protegendo-o da sujeira e do excesso de claridade, abrindo-se rapidamente para deixar passar a luz quando uma fotografia é tirada).

 

Estes significados nos remetem a algo que tapa, obscurece a visão e esconde a “claridade”, a clareza, a luz. E é no desenrolar do filme que veremos o custo de não se poder tomar conhecimento de certas realidades.

 

Na primera cena, o oficial Teddy Daniels vomita durante o seu trajeto à ilha. Mas ele deverá fazer frente à sua própria investigação, da mesma forma que qualquer analisando no consultório. Vulnerável, logo percebemos que tem questões que o incomodam e que lhe perturbam o sono sob a forma de terríveis pesadelos. O protagonista então parece sofrer de neurose pós-traumática. Interessante notar que a palavra “sonho” em alemão (“Traum”), se pareça tanto com “trauma”, que em grego, com etimologia distinta, quer dizer “ferida”. A certa altura do filme o psiquiatra Jeremiah Naehring (Max Von Sydow) fala sobre esse significado e acrescenta que as feridas provocam monstros que tentamos deter dentro de nós. Sendo assim, parece que se queremos curar nossas feridas não teremos outra opção além de encarar os monstros que elas possam haver provocado.

 

O seu vômito durante o trajeto de chegada à ilha e que ele justifica ser causado por estar mareado, é um sintoma. É a tentativa de  reestabelecimento de seu equilíbrio psíquico. É preciso expulsar tudo o que não pode conter dentro de si e que lhe é tóxico. Ele deseja desfazer-se daquilo que não pode ser metabolizado por ele devido à sua extrema fragilidade. Por isso o protagonista vomita, talvez sentindo-se como uma criança desprotegida frente à imensidão da água da “mãe”, do oceano (símbolo do inconsciente). Ele diz a si mesmo: “componha-se”, tratando de por ordem dentro de si próprio, fazendo uso dos recursos sãos com os quais conta frente a seus “aspectos traumatizados” e diz: “é água, só água, muita…” Trata, assim, de aplacar seu desarranjo emocional.

 

Saberemos mais adiante que a água para ele representa a morte em lugar da vida (líquido amniótico no qual flutuamos e nos desenvolvemos para nascer). A água para Teddy, ao contrário, é a morte. Mas é muito difícil explorar as múltiplas camadas deste filme sem incorrer em spoilers.

 

O filme é permeado por metáforas psicológicas e psicanalíticas. No cemitério do hospital, por exemplo, observamos um letreiro: “Recorda também de como vivemos, amamos e rimos”, o qual parece aludir a este sanatório de meados do século XX como um lugar de não vivos.

 

A imagem de uma paciente psicótica, deteriorada pela enfermidade e os tratamentos orgânicos invasivos da época (lobotomia) visam a silenciar, o que pode ser visto como um recurso contrário à verbalização empregada pela psicanálise como possibilidade de alívio e elaboração. Este silêncio, próprio da paranoia, fundamenta o pacto com a loucura. Entretanto, sempre podemos contar com o inconsciente, que se encarregará de denunciar a verdade (através de sonhos, delírios, etc).

 

Olhar para o ser humano que há em cada paciente, independente de sua patologia, é um exercício importante para a clínica psicanalítica. É isso que amplifica inclusive a nossa capacidade de manejo clínico da angústia produzida pela aproximação da loucura.

 

A cumplicidade entre a estória e o espectador chama a atenção para a mecânica do contágio do delírio, de uma loucura compartilhada, conhecida também como “folie à deux” (“loucura a dois”). Fica fácil entender porque algumas pessoas que convivem con pacientes delirantes acabam compartilhando do mesmo delirio: o fazemos por simpatía com o delirante, que acaba por nos convencer de sua verdade.

 

Ainda que não tenhamos histórias tão sinistras como a de Andrew, em cada um de nós, em nosso mundo interno, há duelos, culpas, raivas, assassinatos, mortes… Crianças internas desamparadas, crianças feridas sofrendo, perseguidas por aspectos hostis.

 

O encontro consigo mesmo é libertador e requer força para recuperarmos a esperança, por mais que estejamos vivendo tempos difíceis. A análise não é um caminho fácil nem rápido, passa por momentos de obscuridade, incertezas e medos, não obstante, oferece acolhida, compreensão, esperança e paciência para acompanhar o caminho do crescimento até onde seja possível.

 

O “grand finale” nos brinda com a frase: “O que é pior, viver como um monstro ou morrer como um bom homem?” Perguntas como esta talvez estejam presentes de forma implícita em nossos consultórios. Acaso não é nesse lugar privado e acolhedor, onde tentamos esclarecer os mistérios que determinam os sofrimentos de nossos pacientes, que se faz necessário enfrentar os monstros que existem desde a mais tenra infância?