Quem tem hábito de cancelar

Publicado dia 6 de julho de 2021

Maria Zélia Brito de Souza

Temos ouvido, ultimamente, falar sobre “cancelamento de pessoas”, “exclusão de amigos das redes sociais”, “fazer uma limpa de amigos no seu perfil” e expressões como estas que significam que, com um simples click, damos um “chega para lá” ou um “cala a boca” para pessoas indesejáveis.

As redes sociais se tornaram um lugar de expressão onde cada um tem a liberdade de expor seus pontos de vista, suas preferências, seus discursos, suas militâncias, suas bandeiras, posições políticas, sua vida privada, seus interesses profissionais e etc.

E é dentro deste espaço profissional e pessoal, “tudo junto e misturado”, que as pessoas definem o que é certo e o que é errado, sem uma organização dos parâmetros para este julgamento.

O lado positivo de tudo isto é a liberdade que cada um tem de colocar seus pensamentos e posições, uma conquista importantíssima que nossa sociedade adquiriu através de lutas por muitos séculos.

Os riscos do cancelamento

O outro lado da questão é que estamos perdendo nossa capacidade de discutir, termo que deriva do latim, originalmente significando “bater de diversos lados”,  que foi evoluindo e chegando no significado atual da palavra, que sugere que “analisemos questionando” ou “examinemos detalhadamente”, sugerindo, então, que possamos analisar as questões de forma detalhada, a fim de “oferecer a outra face”, no sentido de olhar por outro prisma, pelo outro lado, do avesso.

Uma outra reflexão ao analisar esta cultura da exclusão é que, sendo repetida pela sociedade de forma inconsciente, pode nos levar a padrões de comportamento muito severos, inclusive, se não estivermos atentos, podendo resultar em atitudes de apedrejamento, linchamento, provenientes de um poder desmedido que incita o ódio e a rejeição.

Comportamento excludente

Este comportamento vai contra a construção de um ser humano integral, que prega a educação das pessoas numa construção menos autoritária, onde compreendemos que pessoas boas têm falhas e vice e versa. Uma construção onde o maniqueísmo, baseado na dualidade entre o bem e o mal, a luz e as sombras, dá lugar a um ser humano integral, que pode manifestar ao mesmo tempo boas atitudes, e em outras vezes atitudes menos nobres.

Este pensamento exclusivo não visa a reconstrução do ser humano, mas acredita que o cancelado não tem a capacidade de mudar através da interação com qualidades opostas, e neste tipo de comportamento, quem fala mais alto sai ganhando.

O surgimento da “cultura do cancelamento”

A  prática do cancelamento  existe há muito tempo, porém num nível e numa compreensão diferentes dos nossos dias, quando ganhou maior importância devido à velocidade das informações, com o advento da internet e redes sociais. Este fenômeno começou a ganhar força em 2017, com o surgimento do movimento #MeToo, que foi criado para acolher denúncias de assédios sexuais, e o abuso exercido contra mulheres, por homens conhecidos.

Daí, para a evolução do que chamamos hoje de cultura do cancelamento ou da exclusão, foi um pequeno passo, pois as pessoas perceberam que podiam ter voz, e que podem ser detentoras de um grande trunfo de poder nas mãos, justamente pela capacidade de calar a voz de quem julgam ter agido ou se expressado de maneira “errada”.

O olhar da psicanálise

Sob o olhar da psicanálise, podemos interpretar o ato do cancelamento, quando realizado de forma inconsciente e desmedida, como uma incapacidade de lidar com a frustração e dificuldade de interagir com quem pensa ou é diferente de si.

Esbarra no comportamento narcísico que julga que sua opinião é sempre superior, e que por conta disto, não dá nem oportunidade do outro se manifestar.

Diferindo essencialmente do protesto, que é um ato de “reclamar”, “bradar contra”, o cancelamento ou exclusão é uma ação totalmente unilateral, que encerra em si qualquer capacidade de diálogo.

Portanto, sob o prima psicanalítico, pensamos que o cancelamento é um ato que deve ser exercido de forma consciente, refletido sob a ótica da empatia e do diálogo, e que estejamos cientes de que todos somos seres humanos falíveis, e que todos, desde que ajam de forma respeitosa e humanitária, têm o direito à manifestação.

Pensamos também que aquele que é protestado em seu comportamento ou manifestação, pode buscar dentro de si a capacidade de dialogar, de rever seus pontos de vista, olhar sob uma outra ótica. Essas são características essenciais de quem visa o próprio crescimento e aprimoramento pessoal.

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